Habitei 30 anos em Portugal e 10 na Holanda (sim, mais precisamente na Holanda do Sul, uma província dos Países Baixos). Venho assim por este meio referir a V. Exas. meus prezados e caros compatriotas que a ladainha do "eu só uso o carro porque não tenho alternativa", em boa parte dos casos, é, como diz sabiamente o povo, desculpa de mau pagador!
Primeira evidência
Trabalho numa instituição europeia com escritório na Holanda, logo, várias culturas e várias nacionalidades exatamente com as mesmas condições de infraestrutura viária e de transportes públicos, e exatamente com as mesmas condições de rendimentos e de salários. O ambiente perfeito para uma experiência social. Resultado: trabalhadores do sul, como por exemplo portugueses, espanhóis, italianos ou gregos, vão quase todos de carro; franceses e alemães meio-termo, e da Alemanha geograficamente para cima vai quase tudo de bicicleta. A percentagem de pessoas que vai de bicicleta correlaciona positivamente com a latitude do seu local de origem. Repito, temos todos as mesmas condições de acesso a transportes públicos e bicicleta, e temos todos o mesmo rendimento para as mesmas funções. Mais um dado interessante, os gregos e italianos ainda são piores que os portugueses na ostentação, pois quase todos os gregos vêm de SUV e a maioria dos italianos nem sequer ousa usar bicicleta (estamos na Holanda, no melhor país do mudo para pedalar).
Segunda evidência
Num belo, pacato e soalheiro dia de Verão dirigi-me a Roterdão para passear com amigos. Roterdão é a cidade de Erasmo e embora o escritor do "Elogio à Loucura" só lá tenha vivido até aos 6 ou 7 anos de idade, continua a ser chamado Erasmo de Roterdão. Sentámo-nos num banco em frente a uma rodovia que possuía uma via para automóveis e outra via para bicicletas. Expliquei-lhes, tal como Sócrates explicava a Fedro na obra de Platão, que a Ciência baseia-se em evidências e que eu tinha uma hipótese (vide acima primeira evidência), e que lhes iria provar que a hipótese era válida com recurso a uma segunda evidência completamente independente da primeira, por forma a que a hipótese fosse mais sólida. Não basta, em Ciência, apresentar muitas evidências para tornar uma hipótese mais sólida, se estas não forem independentes entre si.
O teste era simples: verificar a cor do cabelo dos condutores de automóvel e dos ciclistas e contá-los e chegar a percentagens. Recordo os caros compatriotas que Roterdão é das cidades da Holanda com mais multiculturalismo, há de tudo. As conclusões do "estudo" foram avassaladoras: mais de 90% das pessoas que seguiam sobre um selim eram loiras, e mais de 90% das pessoas que seguiam ao volante de um veículo motorizado tinham cabelo preto (ou burca). Viviam provavelmente todas na mesma cidade, com exatamente a mesma oferta de infraestrutura e de transportes.
Conclusão deste "micro-paper"
Podem V. Exas. meus prezados e caros compatriotas ludibriar-vos a vós próprios e aos políticos com a ladainha do "eu só uso o carro porque não tenho alternativa", mas a mim não me enganam! Isto não quer dizer, obviamente, que não haja gente que de facto não tem alternativa. Digo apenas que o factor cultural também tem enorme peso na decisão.
Enumero:
a) status, o motivo pelo qual tanta gente compra SUV, das compras mais irracionais que pode existir para um veículo citadino;
b) colocar o conforto pessoal à frente do sacrifício pessoal, esquecendo que, por vezes, o sacrifício no curto prazo pode levar a bem-estar no longo prazo.