Aprecio a exigência financeira, de alguma direita portuguesa, nas contas públicas e na forma como cada político ou cidadão deve lidar com os dinheiros públicos, desde o erário público das administrações centrais à gestão financeira do poder local. Tal revela uma exigência e rigor, à qual a cultura mediana portuguesa não está propriamente habituada, não é por acaso que muitas vezes nos países nórdicos somos conotados como perdulários. No entanto, bem mais grave que ser perdulário, é fazer passar-se por financeiramente rigoroso, e ser todavia mais perdulário que aqueles aos quais acusamos de serem perdulários. Foi o caso do PSD-Lisboa que acusou a edilidade de alegadamente gastar 5 milhões de euros em 210 km ciclovias, quando um simples túnel com 1,7 km custou aos cofres públicos cerca de 27 milhões de euros, ou seja mais de 5 vezes mais. Caso para perguntar: rigor financeiro ou hipocrisia?
A Metafísica do Humor: uma análise evolutiva e psicanalítica
Publicada por João Pimentel Ferreira
Freud explicava no meu entender bem o funcionamento do humor, e mais concretamente das piadas. Adoto doravante o termo piada para qualquer mecanismo que faça o outro indivíduo rir-se. Para Freud a piada era um sinal primário e encriptado enviado para a mente, sinal que denigre ou humilha os demais ou que tem um cariz instintivo. Quando falamos de primário falamos de estímulos psicológicos normalmente de cariz sexual ou escatológico, relacionadas com certas características de determinados indivíduos ou grupos.
Diferença entre um riso forçado e verdadeiro. A protuberância das bochechas e os músculos na zona ocular fazem a diferença. Fonte: URL. |
Quando descodificamos através do pensamento, mais concretamente através dos lóbulos frontais, o que está encriptado, rimo-nos. A mensagem chega primeiramente aos lóbulos frontais, a parte responsável pela fala e pela interpretação da linguagem. Quando os lóbulos frontais a descodificam, usando do pensamento abstrato, a mensagem de repente revela possuir um carga primária extremamente forte o suficiente para canalizar informação neuronal para o sistema límbico, o lado evolutivamente mais antigo no cérebro humano, tendo como retorno o prazer. António Damásio explica muito bem, em O Erro de Descartes, que não conseguimos estimular conscientemente certos músculos das zonas ocular e oral, e que os mesmos são apenas estimulados quando nos rimos de forma verdadeira, sendo a estimulação ou não de tais músculos o que distingue, numa análise da face do outro indivíduo, o riso verdadeiro do falso. Perante uma "boa" piada, a mensagem após ser descodificada, por ter uma carga primária forte, é enviada para o sistema límbico, o sistema cerebral mais primário, que por sua vez ativa essa zona muscular por debaixo dos olhos.
Aceitamos socialmente a humilhação dos demais porque essa humilhação é latente e não patente. Um exemplo interessante foi quando o humorista famoso Ricardo Araújo Pereira no programa semanal Governo Sombra referiu que "gostava de brincar à apanhada com Schäuble". De forma reflexiva e imediata, falamos de coisas tão pueris como "brincar à apanhada", algo que se faz em criança e por conseguinte não associamos a maldade, logo de forma imediata não poderemos associar brincar à apanhada com um político a algo negativo. Isto é, quando analisamos a mensagem de forma estritamente reflexiva, ou seja, a que nos remete para um reflexo, estamos perante algo pueril e que demonstra que desejamos o melhor para o referido membro da classe política e que até gostamos tanto dele que até gostaríamos de brincar à apanhada consigo. Mas quando refletimos, ou seja, quando a abordagem deixa de ser a reflexiva, e passa a ser a refletiva, ou seja de reflexão, percebemos que o Sr. Schäuble é paraplégico e jamais poderia brincar à apanhada com ninguém porque está imobilizado numa cadeira de rodas. O "embrulho" que a mensagem traz é estritamente pueril e inofensivo, mas o conteúdo secreto que lá no fundo carrega, é primariamente forte, ou fazendo uso das próprias palavras do humorista, é "javardo", estando relacionado com emoções primárias e instintivas de natureza sexual, humilhação ou maledicências de indivíduos, enfermidades, questões de natureza escatológica, ou mesmo humilhação de grupos, por norma minoritários.
Quando uma piada não está suficientemente encriptada, dizemos que é de mau gosto. Quando uma piada está bem encriptada, mas a mensagem inerente não é suficientemente primária ou forte, dizemos que é uma piada "seca", ou uma má piada. Na língua Portuguesa faz-se uso do adjetivo "seco" para categorizar as más piadas, sendo esse adjetivo antónimo do adjetivo "molhado" ou "húmido", termo que também tem conotação psicanalítica com matérias de natureza sexual e que por inferência faria referência às "boas" piadas, ou seja, uma boa piada é a piada "húmida". O "bom gosto" dependerá sempre do nível intelectual do indivíduo e por norma do seu estrato social ou do grupo onde se insere. Apenas o Homem se ri, mais nenhum animal tem este tipo de mecanismo psicológico, pois a piada envolve uma comunicação complexa, como a oral, escrita ou mesmo multimédia, como um cartoon ou um sketch. Mais uma vez de salientar que adoto a terminologia piada para qualquer tipo de mecanismo que faça o outro rir.
O seu propósito evolutivo, no meu entender, pelo que tenho lido sobre psicologia evolutiva, foi exatamente o da estratificação social em função do intelecto e de características psicológicas comuns, ou seja, de fazer com que os indivíduos com o mesmo nível de capacidade intelectual ou com denominadores psicológicos comuns, se juntassem sociabilizando-se. Desenvolveu-se naturalmente numa fase tardia do Paleolítico, ou seja quando surge a fala, quando já somos Homo Sapiens. Permitiu que os grupos se tornassem coesos e no meu entender teve um papel muito importante no desenvolvimento do intelecto. Nas piadas de natureza sexual ditas entre dois e com o intuito do acasalamento, permitiu que macho e fêmea partilhassem alguns denominadores comuns, evitando por conseguinte a prejudicial miscigenação. Explico noutro texto, em Os três graus da atração: Amor, Paixão e Desejo, onde distingo paixão de desejo, porque motivo a miscigenação teria sido prejudicial evolutivamente para o grupo étnico, por conseguinte estando relacionada com a seleção de grupo. Creio que a piada teve o mesmo propósito social, ou seja, de estratificar ou gentrificar o Homem e dividi-lo em função das suas características psicológicas comuns. Por isso ainda usamos a piada para denegrir minorias, evolutivamente os membros das outras tribos potencialmente inimigas; ou pessoas das quais temos um certo repúdio comum, evolutivamente pessoas dentro da tribo com as quais fazíamos alianças para as destronar. Schäuble é um homem poderoso, por isso a piada de Ricardo Araújo Pereira é também "boa", porque ridiculariza o socialmente proibido. Devido à questão da seleção de grupo e da estratificação étnica, hoje em dia mesmo com a sociedade globalizada, os humores continuam a variar em função da cultura de cada povo. Os brasileiros, povo de "sangue quente", têm piadas de natureza primária muito mais forte e por vezes pouco encriptadas, que para um natural do norte da Europa poderão parecer excessivas ou de mau gosto; já os povos do norte da Europa têm piadas demasiadamente encriptadas e com pouca carga primária, que para muitos povos do sul, são consideradas simplesmente sem graça.
A piada é tão melhor quanto mais primária, encriptada e proibida for. A "piada perfeita", se é que ela existe, leva estas três variáveis ao extremo. Mas para a descodificar, é preciso que o indivíduo tenha inteligência para tal. Se demorar demasiado tempo para ser descodificada, perde o poder primário que leva ao riso, e após a descodificação, transmite apenas admiração e espanto. Certo dia num bar em Estocolmo um sueco contou-me uma piada típica de povo nórdico, a qual consegui descodificar apenas no dia seguinte. Por essa altura, quando habitava em Estocolmo, fumava e entrei no referido bar a fumar. Na entrada estava o referido sueco com dois amigos, e tinha uma cerveja na mão estando extremamente embriagado. Eu ao entrar, o sueco diz-me muito rapidamente em Inglês, num estado ébrio e rindo-se para mim e os seus dois amigos, sem me dar qualquer hipótese de reação: "não devias fumar, é mau para o fígado". Não tive qualquer reação e segui, pois julguei no instante que se tratasse apenas de uma frase sem sentido de um bêbado. Os estímulos num bar são demasiados e intensos e não permitem uma análise por parte dos lóbulos frontais demasiadamente alongada. No dia seguinte percebi que ele estava a chamar-se a si próprio ébrio e festivo, e como estava com mais dois amigos, estava latentemente a discriminar-me pelo facto de eu num bar nórdico, estar a fumar e não a beber, remetendo-nos para a piada sobre o indivíduo que compõe uma minoria. Mas a piada era tão críptica, que apenas no dia seguinte percebi o seu significado. Mas permitiu que o sueco e os seus amigos, naquele instante, porque o humor nórdico adota aquele padrão, se rissem de mim. Ou seja, a piada permitiu evolutivamente estabelecer laços sociais de natureza críptica, cuja interpretação estaria ao alcance apenas dos membros da uma etnia ou grupo, aquilo que hoje em dia se define por gentrificação, mas aqui num sentido mais lato e evolutivo. Considero que evolutivamente a Paixão teve exatamente o mesmo propósito.
Sobre Ricardo Araújo Pereira
Não julgo que o humorista Ricardo Araújo Pereira, que conta excelentes piadas, seja um génio, é sim trabalhador e metódico. É possível fazer-lhe uma análise superficial de natureza psicanalítica e impessoal apenas pela forma como se expressa na televisão. Quando fala nunca fala com fluidez, tem várias pausas, gagueja mesmo, e tal serve para pensar e refletir no que especulativamente dirá para fazer o outro rir. É um artista no sentido clássico do termo, na medida que domina uma arte, ou seja, um ofício cuja experiência lhe permite estabelecer os encadeamentos lógicos corretos que farão o outro rir-se. Por certo desconhece por completo a abstração freudiana ou teórica do riso, mas é um excelente artesão cujo conhecimento adquiriu por experiência e não por estudo estritamente teórico. Aliás, tal como acontece com a grande maioria dos grandes artesãos, ou seja, dominam uma técnica pela experiência e conhecimento empírico e não pelo estudo teórico dos seus mecanismos. Cristiano Ronaldo perceberá por certo muito pouco de mecânica clássica, por certo nem saberá sequer quem foi Newton, mas não deixa de dominar de forma soberba no seu dia a dia as mais basilares leis da física.
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