Um dos mitos mais propalados por uma grande parte da população portuguesa, mas também europeia, é de que se anda muito de bicicleta na Holanda. Ora tal proposição não poderia estar mais longe da verdade. Enquanto discente numa faculdade de engenharia, um dos professores disse-me em tempos uma frase que me marcou, cujo princípio referia que uma pessoa da Ciência raramente usa expressões relativas como “muito” ou “pouco”, fazendo uso todavia de números e factos para descrever a realidade. Há uma exceção para as raras situações em que as pessoas da Ciência podem adotar expressões relativas, que são as situações em que os indicadores comparativos estão bem definidos. Demonstrarei então por conseguinte, que de facto, pedala-se pouco na Holanda.
De acordo com a Plataforma Europeia na Gestão da Mobilidade, EPOMM na sigla em Inglês, que coligiu a repartição modal de várias cidades da Europa, na cidade da Haia, a bicicleta tem uma repartição modal de apenas 19% que compara com os 46% do automóvel; na cidade de Roterdão a bicicleta tem apenas uma repartição modal de 16% contra os 49% do automóvel; e mesmo em Amesterdão, um dos magnos exemplos da mobilidade em bicicleta, a repartição modal da bicicleta é de apenas 22% contra os 38% do automóvel. Aplicando uma média simples a estes três casos, podemos afirmar que nas três maiores e mais populosas cidades da Holanda, usa-se mais do dobro o automóvel para movimentos pendulares do que se usa a bicicleta para o mesmo tipo de trajetos. Fazendo então o comparativo dentro da própria Holanda pode-se afirmar, que de facto, pedala-se “muito pouco” na Holanda, pois pedala-se menos de metade do que se anda de automóvel.
O busílis da questão é que a visão que temos da realidade está totalmente distorcida devido à elevada hegemonia do transporte motorizado. Percebe-se que, quando o senso comum afirma que se anda “muito” de bicicleta na Holanda, está na realidade a fazer um comparativo com outros países da Europa, cuja utilização da bicicleta, como em Portugal, chega a ser quase residual e negligenciável para fins estatísticos. Dentro do mesmo enquadramento do senso comum, se perguntarmos então a alguém na rua se há ursos polares em Portugal, dir-nos-ão que não os há, mesmo que os possa haver no jardim zoológico de Lisboa. Mas como o caso é residual e negligenciável, pode-se afirmar grosso modo que não há ursos polares em Portugal.
Da mesma forma, pode-se afirmar que não se pedala em Portugal, quando comparamos a repartição modal da bicicleta em Portugal com a do automóvel. Em Portugal a repartição modal do automóvel é cerca de 60% enquanto a da bicicleta rondará menos de 0,5%, sendo o seu valor tão negligenciável que o INE nem o discrimina no seu gráfico oficial sobre a temática. Ou seja, aproximadamente, por cada 120 pessoas que usam o automóvel para as suas deslocações diárias em Portugal, há apenas uma que usa a bicicleta. Falamos então de um valor negligenciável, que faz com que alguém dotado de senso comum possa afirmar, sem incorrer num enorme erro, que “em Portugal não se pedala”. Na mesma dialética, expressões como “em Aveiro pedala-se muito”, estão altamente distorcidas e têm apenas sentido num contexto comparativo muito específico.
Todavia nem sempre foi assim. A repartição modal da bicicleta até ao princípio da era automóvel, em meados do séc. XX, foi bastante mais alta do que o é nos dias de hoje. Regressar a esses tempos com referência à repartição modal não é por conseguinte impossível. E não nos esqueçamos ainda que os modos de transporte concorrem entre si na repartição modal, tal como uma empresa concorre com outras pela sua quota de mercado. De referir ainda que a configuração dessa repartição modal está altamente dependente da sensação de segurança para o utilizador e das infraestruturas para cada modo. São por conseguinte necessárias políticas públicas que alterem substancialmente o paradigma contemporâneo das sociedades baseadas nos modos motorizadas, pelas razões já várias vezes difundidas. Não percamos os objetivos e saibamos interpretar os factos e os números num contexto de uma sociedade que idealizamos e não com referência ao paradigma atual.