Como o automóvel limita a Liberdade


Liberdade de movimento

Um sofisma muito comum no campo político-filosófico, é a questão da "liberdade para usar carro"; esquecendo os seus autores a premissa filosófica elementar que a liberdade de um termina quando começa a do outro. Para que um automobilista possa circular em fluidez na cidade de Lisboa, a edilidade teve de alocar por exemplo catorze vias para o automóvel em alguns troços na Av. da República, significando que aqueles que não têm rendimentos para suster um automóvel ou que simplesmente decidem andar a pé, têm direito apenas a menos de 5% do espaço público da via, quando esse espaço é medido transversalmente. O espaço para saciar o automóvel nas urbes modernas, ronda 2/3 de todo o espaço público entre rodovia e estacionamento.

O automobilista urbano é por conseguinte um castrador físico da liberdade de movimento, no espaço público, de terceiros. E não se trata apenas da questão da ocupação do espaço público que outros não poderão usufruir, como por exemplo em jardins, esplanadas, praças ou campos de jogos; mas também no mais que estudado efeito de barreira que certas rodovias criam no meio do espaço urbano, como por exemplo a CRIL, o eixo norte-sul ou a segunda circular em Lisboa; em que pessoas que são fisicamente vizinhas, na medida em que as suas residências distam em linha reta poucas centenas de metros, estão na prática fisicamente limitadas a uma distância bastante maior, porque entre elas existe uma via rápida urbana com perfil de autoestrada.

Liberdade económica

Nas sociedades capitalistas, despesas financeiras recorrentes e periódicas, representam limitações à liberdade individual, na medida que o cidadão precisa de trabalhar, alocando tempo pessoal, para saciar esses custos. O português médio por exemplo trabalha metade do ano, ou seja 340€ por mês, em 710€ que é o salário médio líquido, para pagar as despesas totais do seu carro. Elas são o seguro, o combustível, as revisões, reparações, possível crédito automóvel, desvalorização do veículo, lavagens, eventuais multas, IUC, portagens e parqueamento. Esse custo total ultrapassa muitas vezes os 500€ por mês, mas as pessoas não fazem essa contabilidade porque as contas que se pagam aparecem distribuídas pelo ano em diferentes parcelas.

Ou seja, o automóvel, ao exigir que o seu proprietário incorra numa série de despesas periódicas e fixas, as quais terá de trabalhar alocando tempo pessoal, para as suster, é também um castrador da liberdade do seu proprietário. Aliás, é esta uma das premissas lógicas das sociedades neo-liberais, ao exigir menor carga fiscal por parte do Estado, na medida que uma elevada carga fiscal, nas economias de mercado, limita a liberdade dos contribuintes; ou seja, estes têm de trabalhar mais horas para poder obter o mesmo rendimento líquido. Mas a mesma sequência lógica, pode perfeitamente ser generalizada a qualquer despesa fixa e recorrente, como o caso do automóvel particular. E se no caso da carga fiscal imposta pelo Estado, a grande parcela da despesa pública serve para pagar salários e prestações sociais, ou seja, é dinheiro que é alocado para nacionais, tratando-se a carga fiscal então apenas, do ponto de vista macroeconómico, de uma transferência massiva de capitais entre nacionais; já no caso do automóvel, trata-se de uma transferência de capitais massiva para o estrangeiro, na medida que as maiores importações de Portugal são carros e combustíveis, representando estas duas parcelas cerca de 1/4 de todas as importações.

Direito à segurança, qualidade de vida e ambiente

Não menos importante, são as limitações da liberdade de terceiros, que nas economias de mercado, são materializáveis nas externalidades negativas, na medida que estas externalidades tendem a mensurar essas limitações como um custo monetário para o interesse público. E essas limitações da liberdade impostas pelo automóvel, são a poluição do ar, a poluição sonora, ou seja, ruído, a sinistralidade rodoviária, onde uma grande parcela da mesma envolve sinistros com peões, poluição do solo, poluição das águas ou ainda alterações climáticas. Logo, o automóvel limita os direitos à segurança, qualidade de vida e ambiente, direitos constitucionalmente consagrados, colocando em causa por conseguinte a liberdade de terceiros para que possam usufruir desses mesmos direitos. Assim, de facto, o automobilista comum viola um dos pilares filosóficos elemantares da liberdade, na medida que limita a liberdade de terceiros, para que possam viver saudavelmente e com qualidade de vida numa cidade sã e segura.

Questão fiscal

Não seria razoável que um determinado contribuinte tivesse de suster, através da carga fiscal, bens ou serviços não considerados fundamentais, de outro determinado concidadão. Mesmo as despesas, que o estado social abrange, são por princípio despesas consideradas como fundamentais ou essenciais a um mínimo de qualidade de vida, e que por norma estão vinculadas a direitos consagrados pela jurisprudência constitucional. Todavia, na realidade, no saldo fiscal entre o proprietário e utilizador de automóvel contribuinte, e o Estado promotor de obras públicas de foro rodoviário, a relação é deficitária para o Estado, refutando a premissa da vox populis que o automóvel é a "vaca do estado".

Por consequência, o automóvel e a sua massificação, também envolvem uma restrição à liberdade de terceiros, por intermédio da administração fiscal, na medida que os contribuintes que não possuem um automóvel, terão de suster uma carga fiscal que servirá em parte para a promoção de obras públicas e manutenção de natureza rodoviárias, quer pela administração central, quer pelo poder local, obras e manutenções que envolvem custos que não são totalmente suportados pela diversa carga fiscal imposta aos automobilistas.

Conclusão

Em última instância o indívíduo tem e deve ter sempre o livre-arbítrio para fazer a escolha que bem entende, mas é ingénuo pensarmos que as políticas públicas não afetam as decisões individuais. Quando todo o desenvolvimento urbano, durante o século XX, mais não fez que ostracizar quem não usa carro e alocar vastos recursos públicos para infraestruturas rodoviárias, seria expectável que as pessoas passassem a dar primazia ao uso do automóvel. Em A Liberdade e o liberalismo económico alongo o meu racioncío sobre essa questão.

O automóvel é de facto um castrador da liberdade, pois o seu titular tem de alocar várias horas de trabalho para saciar as despesas inerentes da sua posse, mas o próprio titular, limita também a liberdade de terceiros, com a ocupação do espaço público em rodovia e estacionamento, espaço que poderia estar alocado a jardins, esplanadas ou campos de jogos, poluição sonora e do ar, sinistralidade de utilizadores vulneráveis, como peões, e ainda a questão fiscal tantas vezes olvidada.

Por conseguinte o automóvel é, de facto e de iure, mas também filosoficamente, um castrador da liberdade individual e de terceiros.

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