Campo Grande; Lisboa. Fonte: imagens dos mapas do Google |
As cidades, desde o seu surgimento há cerca de sete mil anos, sempre foram o local de encontro de diferentes pessoas e culturas, pois contrastavam com a ruralidade, mais homogénea do ponto de vista geocultural. Por essa altura, uma boa parte dos indivíduos que vivia fora das cidades ainda era essencialmente nómada; já nas cidades, o fenómeno do sedentarismo estava definitivamente instituído. A cidade teve um papel extremamente importante no
desenvolvimento das civilizações. Antes dos Romanos ou dos Gregos, os
homens já eram sedentários, fenómeno que apareceu após a revolução do
Neolítico, há cerca de 10 mil anos, e já tinham havido também civilizações
complexas, como no Egito ou na Mesopotâmia; mas foram os clássicos (Gregos e Romanos) que incutiram à cidade os conceitos de ordem,
política e civilização que hoje conhecemos.
Na Grécia clássica, pólis significava cidade, termo que deu origem em português a palavras como políticos (habitantes da pólis ou cidadãos), política (relativo à cidade), cosmopolita (ordem da cidade) ou ainda metropolitano (relativo à medida da cidade). Os Romanos por outro lado, tiveram também um papel muito importante
na administração das cidades, sendo que a própria palavra cidade provém
do Latim (civitas), dando origem a palavras como civilização ou civismo. Outra palavra latina, urbanus, fazia referência às matérias pertencentes à cidade, e além de dar origem à palavra urbano, deu interessantemente também origem, à palavra urbanidade,
que em oposição à ruralidade, com o desenvolvimento da língua, foi
associada também ao conceito das boas regras de educação e de conduta
cívica; aliás como a própria palavra civismo.
A cidade, no seu espaço público, era o local de aglomeração das
gentes, da confraternização, do comércio, dos animais domésticos, dos
velhos, das crianças e de todos os que a visitavam. Mas acima de tudo era o espaço da Ordem, do Estado e da Lei, ou seja da civilização, pois a aglomeração das diversas populações de diferentes etnias num único espaço, criava, tal como ainda hoje acontece em parte em alguns locais, clivagens e tensões sociais. O espaço público era
então destinado por norma a todas as pessoas, cidadãos, mulheres, crianças ou escravos; pobres ou ricos, independentemente dos redimentos ou do estrato social; e foi sempre assim desde a Antiguidade. Locais
de referência eram o Fórum Romano e a Ágora Grega, onde os cidadãos se
encontravam para debater as matérias da cidade. E acima de tudo, uma
grande parte do espaço não era destinado ao movimento, ao fluxo dos
transeuntes, era simplesmente de estadia, como as praças, os pátios, as
travessas ou os becos. E mesmo nas vias destinadas ao movimento, uma
grande parcela de área era destinada à estadia, como hoje é comum
observarmos em algumas pequenas aldeias, ao vermos pessoas calmamente
sentadas em bancos numa qualquer rua.
Chegados ao final do século XX, num passo de 2000 anos, a cidade
sofreu uma transformação radical, na forma de tratar o cidadão. E foi
algo que apesar de ter sido gradual, deu-se apenas num século, o denominado pela índústria século
do automóvel, o século XX. O processo da mutação do espaço urbano envolveu várias frentes. Os espaços de estadia, foram sendo convertidos em espaços de
movimento; o pátio antigo ligava-se a um beco, que por sua vez se ligava
a uma rua maior, alargava-se a rua, e criava-se uma avenida. As vias foram expulsando os peões para as suas laterais,
criando-se então um conceito totalmente novo; o passeio. O passeio
permitiu que as novas máquinas pudessem circular sem obstáculos,
enquanto os peões circulavam nas vias pedonais laterais. Foi então
necessário criar passadeiras, canais de atravessamento entre os vários
passeios. Surgem as grandes avenidas (av. da República em Lisboa por
exemplo), que ao terem alocado a grande maioria do seu espaço
longitudinal ao automóvel, permitiam assim, um maior fluxo de tráfego
motorizado, evitando então na altura, um fenómeno que mais tarde viria a
ser comum: os congestionamentos. As praças, outrora locais de encontro, de comércio ou de mercados
locais, são convertidas em rotundas, cruzamentos ou parques de
estacionamento.
Passando o espaço público a ser desagradável e inseguro, e considerando
que as velocidades médias dos veículos subiam com o desenvolvimento da
tecnologia, o número de atropelamentos de peões subia a cada ano
exponencialmente. Surgem então os diversos código das estrada, com
regras punitivas para os peões incumpridores por forma a salvaguardar a
sua segurança. Peão era um termo militar, quase pejorativo, para o
plebeu que andava na guerra a pé, em contraste com o nobre que andava a
cavalo, o veículo de então, termo ainda hoje usado no xadrez. Por esta altura criam-se os parques infantis, depósito seguro para crianças irrequietas numa cidade periogosa. Com o aumento das velocidades dos veículos a motor, surge primeiro o polícia sinaleiro, e posteriormente a semaforização. Com a obesidade crescente, devido à falta de qualidade do espaço
público para modos ativos, surgem abundantemente os ginásios, para
resolver os problemas crescentes de saúde da população.
A cidade, no seu espaço público, como local de civismo, urbanidade, união, confraternização, aglomeração de gentes e culturas, ou mesmo civilização, no final do
séc. XX, descaracterizou-se por completo, e perdeu totalmente o seu
propósito fundador: o de servir e de existir para as pessoas. A cidade
converteu-se numa fábrica de máquinas metálicas em movimento, com o
vão propósito da mobilidade, sendo que todavia na realidade o automóvel
piorou a mobilidade dos cidadãos, com o espalhamento urbano e o tempo de
trabalho necessário para saciá-lo.
O automóvel não é endógeno à cidade, é, como a própria raiz latina o assinala alienígena; estrangeiro ou forasteiro, uma máquina metálica de uma tonelada que não nasceu na cidade nem foi sequer concebido para a cidade; nem nunca a cidade, nos seus propósitos fundadores, foi desenhada para o receber. Só expulsando o automóvel das nossas cidades e do espaço urbano, e devolvendo-as às pessoas, conseguimos retornar aos princípios clássicos da sua fundação; onde todos, independentemente de terem ou não rendimentos para suster um automóvel, têm pleno acesso ao espaço público.
A sua definição de cidade pode ser encontrada em algumas aldeias do interior do país. Porque ainda não foi para lá?
ResponderEliminarNão é verdade se considerar o número de habitantes. É possível ter espaços urbanos com muitos habitantes, ou seja, uma cidade pela definição técnica atual, mas com mesmo muitos poucos carros. Amesterdão é um bom exemplo!
EliminarSim, mas há um monte de bicicletas. E o relevo (e também cultura) de Portugal torna muito complicado as deslocações de bicicleta. Além disso, o transporte de mercadorias é feito pelos canais de água, algo que Portugal também não tem disponível.
EliminarBoa tarde, obrigado pelo comentário.
EliminarO relevo é um mito urbano que persiste, como pode ver aqui. O transporte de mercadorias pelos canais é algo que não se faz em larga escala na Holanda há muitos anos, e persiste apenas nos canais principais, mas em Portugal também temos os rios. A maior barreira à bicicleta é cultural e de mentalidade.
Sim, mas há um problema a resolver, e que por exemplo se aplica a mim próprio. Como é que vou para o trabalho com fato de bicicleta? Vou chegar lá todo a suar?
EliminarConhece o movimento "Cycle Chic" de Lisboa (www.lisboncyclechic.com)? Por lá vê muita gente que usa a bicicleta para o dia-a-dia. Andar de bicicleta, num ritmo moderado, é como andar a pé, ou seja, existe um ponto no ritmo da pedalada, até ao qual não se sua. Mas cada caso, é um caso. Para pessoas que por exemplo vivem mesmo longe nos subúrbios, e trabalham em Lisboa, torna-se difiícl fazer a mudança para a bicicleta. Em acréscimo Lisboa e os subúrbios tem os erros plasmados nas suas infraestruturas viárias, de 40 anos de hegemonia automóvel. Mas nada que não possa ser alterado.
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