Na idade média, antes do aparecimento da burguesia, havia essencialmente três classes sociais: os nobres que detinham as terras e faziam a guerra; o povo, que trabalhava para os nobres, pagava-lhes impostos e servia na guerra normalmente na infantaria; e o clero, uma classe dotada de conhecimentos intangíveis que dominava os assuntos do sagrado da ordem ideológica vigente.
Os nobres eram os capatazes do povo, geriam os seus negócios, a sua diplomacia militar e territorial com a coroa e defendiam o território contra as invasões de exércitos inimigos, sendo a sua missão mais importante a preservação da soberania territorial. O povo, era quem trabalhava, era a mão de obra de qualquer país, e dele vinham os elementos mais frágeis que serviam nas guerras medievais. Os mais hábeis poderiam servir de arqueiros, por exemplo, ou de cozinheiros para o senhor feudal. Os elementos do clero, eram aqueles que hoje sem qualquer margem para dúvida se denominariam de "parasitas". Entendidos nos domínios da ordem ideológica e teológica vigente, não trabalhavam, não pagavam impostos, não pagavam qualquer tipo de rendas, e ainda recebiam habitações luxuosas, rendimentos generosos, alimentação e transporte gratuitos. E quem pagava tais benesses? A coroa ou os nobres, que por sua vez obtinham através de impostos que cobravam ao povo.
E como mantinha o clero este estatuto superior e quase sacral? Baseavam-se nos Evangelhos, no seu sapiente conhecimento e no medo instituído ao povo do Todo-o-Poderoso, para que o povo fosse explorado e se limitasse a trabalhar para si. O clero era assim, um extrato da sociedade que de tangível nada produzia, e que nem trazia qualquer mais valia económica, social ou intelectual para a nação. O seu domínio era o domínio do intangível, e por esse conhecimento deveria levar uma vida faustosa onde a frugalidade e a temperança não eram termos postos em prática. Foi também devido a este tipo de sectarismo social e a este estatuto quase sacral que o clero de então levava, que se deu origem à denominada Reforma, dando origem às igrejas protestantes.
Transpondo este extrato social para o mundo contemporâneo oito séculos depois, temos também hoje uma nova ordem de clero, que na nossa sociedade pode tomar vários nomes: consultor, banqueiro, investidor ou acionista. É um extrato da sociedade que não obtém os seus rendimentos através do seu trabalho, físico ou intelectual, mas sim através de métodos estritamente especulativos, analíticos e matemáticos para a obtenção máxima de dividendos. O novo "deus" não está plasmado nas Sagradas Escrituras, está sim embutido nos "mercados". A este neo-clero não se exigem conhecimentos de teologia ou filosofia, mas sim finanças e economia. Este neo-clero por norma nada produz, nem mesmo no campo do intelectual, muito menos no campo do trabalho físico, mas obtém os seus rendimentos através da exploração da classe média, ou seja o povo. Quando algo produz ao nível intelectual, baseiam-se normalmente em tratados ou publicações, que servem como faróis ideológicos para que o resto da sociedade os siga na adoração ao seu deus: "o mercado". E tal como na idade média, a própria nobreza e a coroa se ajoelhava perante as exigências do clero, pois eram eles que dominavam os assuntos do Todo-o-Poderoso, também hoje a classe política se verga perante esta nova classe social, que domina assuntos de finanças públicas e economia, os novos deuses.
Todavia o neo-clero é muito mais hábil e subtil na obtenção dos rendimentos que lhes permitem levar uma vida luxuosa e faustosa. Nos dias de hoje, a este mecanismo denomina-se juros. O elemento do neo-clero, que possui capital, mais não precisa que ter uma carteira variada de "investimentos" e colocar os seus "ativos" em vários países, empresas ou instituições. A todo o rendimento que não tiver um retorno, menor que um certo valor de juro por ano, por sinal bastante superior à inflação, o elemento do neo-clero imputa-lhe um custo, o chamado "custo de capital". Para que o comum dos mortais perceba o que é o custo de capital para o elemento do neo-clero, é como se você fosse um profissional liberal que ganhasse 20€/h através do seu trabalho, e certo dia, um amigo convida-lhe para um café às três da tarde, encontro esse que dura uma hora. No final, você perdeu 20€, pois ao estar com o seu amigo, não esteve a trabalhar, e assim não ganhou os ditos 20€, tendo assim um custo de capital de 20€. Mas como você é generoso, e como se trata de um amigo, imputa-lhe apenas 50% dos custos, tendo assim o seu amigo de lhe pagar 10€ por ter estado consigo, havendo justamente uma diluição de custos por todos os intervenientes no encontro.
E tal como o clero antigo, para quem a aparência na indumentária era fundamental para causar a impressão da magnificência nos crentes, também hoje o elemento do neo-clero faz questão de se mostrar esplendorosamente apresentável. Nos tempos modernos a essa indumentária dá-se o nome de "executivo". E tal como na idade média; a terminologia lexical dos elementos do neo-clero é extremamente importante para causar forte impressão nos fieis. Quando dantes se dizia "in nomine Patris, et Filii, et Spiritūs Sancti" que para o comum dos mortais, que era analfabeto e que nem a sua própria língua dominava, ao ouvir esta expressão latina, imediatamente ser vergava; o neo-clero tem termos como "default", "swap", "leasing", "budget" ou "bond".
Por isso nunca fui favorável a revoluções, pois por norma a história demonstra-nos que nas revoluções os revoltosos mais não fazem que tomar os papéis que os anteriores carrascos tomavam. Sou favorável à Educação, à incrementação de cidadãos conscienciosos e livres, pois foi a capacidade do pensamento com os desígnios do Bem, que fez Lutero, dirigir uma das reformas do pensamento mais importantes da Humanidade. E fê-lo sem revoluções, ou manifestações sangrentas, fê-lo, tal como o fez Espinoza ou Erasmo, escrevendo. Precisamos assim de purgar a sociedade destes parasitas, que não trazem qualquer mais-valia ao país, nem intelectual, nem produtiva, e que se limitam a sugar através dos mercados e dos juros, os impostos dos comuns plebeus.
Excelente artigo! A analogia é bastante pertinente. Se fosse possivel fazer chegar à opinião pública em geral esta forma de ver a sociedade podia se talvez aspirar ao equivalente da Renascenca. Infelizmente temo que este artigo esteja muito à frente do seu tempo.
ResponderEliminarÉ. Como Diderot Esclarece Muito Bem. Parabéns. Zeu
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