Muitos se questionam de onde vem o meu "radicalismo" contra a hegemonia do automóvel. Se eu for ao étimo da palavra em apreço, radical vem de raiz, por isso sim, sou radical, pois gosto de procurar a verdadeira raiz dos problemas para desta forma encontrar melhores e mais duradouras soluções. Se para o mundo inteiro um mais um é igual a 4, e um qualquer indivíduo referir em voz alta que um mais um é igual a dois, estará a tomar uma atitude radical e controversa, todavia não quer dizer que não seja verdadeira.
Há quem diga que um homem se define em parte pelo local onde nasceu. Ora, eu sou um caso paradigmático de rebeldia visceral contra o bairro onde nasci. Nasci no Lote 1679 na av. Infante D. Henrique (na realidade nasci numa clínica, mas com dias vim logo para casa) em Lisboa. Na prática, a artéria viária que dava serventia ao prédio onde vivia era a Rua Vale Formoso de Cima, onde passei milhares de horas da minha juventude. Vivi nesse bairro desde que nasci até os 18 anos de idade, ou seja 18 anos da minha vida. Foi nesse bairro que construí das amizades mais estruturadas e mais duradouras, os denominados amigos de infância. Todavia assisti gradualmente à constante degradação do espaço público da rua onde cresci.
Quando tinha 10 anos de idade os passeios tinham uma largura de mais de 2 metros ao longo de toda a rua, permitindo por exemplo que pessoas com carrinho de bebés e com mobilidade reduzida, ou idosos se pudessem deslocar. Em 1997 fizerem-se substanciais obras de "melhoria". Removeu-se o empedrado, alcatroou-se a rua, e os passeios foram reduzidos ao que hoje são, ou seja menos de meio metro. A praceta onde jogava à bola, era um parque de estacionamento, em que estávamos constantemente a ser expulsos pelos donos dos automóveis. Quando vi que chegaram as máquinas para umas obras na praceta onde jogava à bola, mesmo em frente ao meu prédio, ganhei esperança pois julgava que a autarquia iria construir um campo de futebol para eu brincar com os meus amigos. Mas não, a Câmara mais não fez que aumentar o dito parque de estacionamento, para que pudesse comportar mais automóveis.
Desloquei-me então para outra praceta, esta privada, onde jogava à bola com os amigos. Como o piso era liso, denominávamos o local apenas de "liso". "Vamos para o liso jogar à bola" dizíamos entusiasmados. Do local fomos mais uma vez expropriados, desta vez pelo dono do espaço, o condomínio do prédio onde se situava. Chamavam a polícia e expulsaram-nos de vez, fazendo do espaço o que hoje é: um parque de estacionamento.
O argumento ainda mais falacioso é daqueles fanáticos dos popós que vivem nesta rua, e que dizem que não há alternativas nos transportes públicos, o que é totalmente falso. Nesta rua, ou perto, passam seis carreiras da Carris (718, 749, 755, 782, 794, 728), existe a estação ferroviária de Braço de Prata (em 10 minutos está-se de comboio no Oriente, em Santa Apolónia, Areeiro ou em Entre-Campos) e ainda existe a estação de Metro de Chelas a 15 minutos a pé. Mas para os meus vizinhos, os transportes públicos só serão uma solução quando os comboios da CP tiveram striptease a bordo e os autocarros da Carris servirem caipirinhas. A Rua Vale Formoso de Cima tem uma oferta excelente de transportes públicos. Negá-lo é negar a verdade, mas quase todos os meus vizinhos têm carro, e só se deslocam de carro, tendo feito da minha rua o bastião dos caracóis e dos fanáticos dos popós.
Há muito tempo que este Vale deixou de ser Formoso!
O estacionamento selvagem, onde num país civilizado daria lugar a multa, aqui é algo padronizado. |
O passeio ia até à estrada, mas em 1997 reduziu-se o passeio ao que hoje é para dar lugares de estacionamento |
Os passeios têm apenas meio metro |
No passeio da papelaria Lagartinha, apesar de ser passeio, o estacionamento ilegal é há muitos anos considerado aceitável |
O estacionamento ilegal é aceite com normalidade e ninguém chama a polícia, ou quando chamada, nada faz |
Taxa de Motorização em Portugal 1991-2002. Um crescimento de 220%, dando uma média de 20% por ano. Fonte: Eurostat |
Caro João Pimentel Ferreira,
ResponderEliminarCompreendo o teu ponto de vista e concordo plenamente contigo que hoje em dia dá-se primasia ao automóvel sempre em prejuizo dos peoes ou ciclistas. Basta ver que muitas das atuais ciclovias existentes em Lisboa foram feitas à custa de reduzir passeios (ou mesmo em cima dos passeios) e nunca retirando espaço aos carros.
Contudo peço que imagines o seguinte cenário: ter 2 (ou mais) filhos que entram na escola às 9h00 que fica a 2 km de casa, e trabalhar em local incerto (uns dias em Lisboa, outros em Alfragide, outros em Sines, etc.). A escola (aliás o ATL) termina à mesmo hora que se sai do emprego. Ter atividades extra curriculares das crianças a 2 ou 3 km da escola e 15 minutos depois do final da escola. Ter de garantir que existe comida em casa para todas as refeições.
Agora imagina fazer isto tudo de transportes públicos ou de bicicleta! Simplesmente não dá.
Ou tens um emprego das 9h às 17h que sabes sempre que sais à mesma hora todos os dias ou então é para esquecer.
Experimenta vir de Alfragide para os Olivais de transportes públicos e vais ver quanto tempo demoras.
Por isso acho que podemos ter carros, mas temos é que respeitar quem anda a pé!
Por exemplo no prédio que eu morava na Rua Fernando Maurício haviam muito lugares vazios na garagem e depois viam-se carros em cima dos passeios...
Poderíamos adotar boas práticas internacionais: no Japão para se poder comprar um carro é preciso apresentar uma declaração de que se dispõe de um lugar para o estacionar. Caso contrário não te vendem o carro.
Cumprimentos
Caro Miguel
EliminarObrigado pelo comentário. Acho sinceramente que todo o conceito da cidade está errado. No meu tempo, os meus pais colocara-me no colégio que ficava em frente ao seu trabalho, ou perto de casa. Mal "comecei a andar", passei a ir a pé para a escola, porque as ruas eram seguras. Hoje os pais colocam os filhos em colégios a 10km de casa, só "porque é bem" num qualquer colégio especial. Na Rua Fernando Maurício (ou perto), há dois colégios, o Cesário Verde e o da Bruno Janz, todavia muitos dos habitantes do bairro colocam os filhos noutros colégios, já estes dois colégios têm muitas crianças de fora do bairro.
No meu tempo, o colégio tinha uma carrinha, que ia buscar as crianças, e porque eram muitas, não ficava muito mais caro. Hoje esta prática caiu em desuso. Não digo que o carro não seja importante em certos aspetos, só acho que usamos e abusamos do carro, com todas as consequências nefastas que isso acarreta.
E pense que tem de trabalhar para pagar o carro: Faça as contas em quanto lhe fica em www.autocustos.com. Já fez?
Cumprimentos
Para o Subscritor deste artigo e seu comentador deixo somente um excerto da Bíblia: 2 Carta a São Paulo a Timóteo e tirem daí as suas conclusões.
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