O automóvel e o tabaco estão ao mesmo nível?


Quando comecei a interessar-me pelas questões da mobilidade em Portugal e no mundo, qual profano, conotava os ciclistas urbanos como alguém que gostava de ser diferente, e que se punha à parte na sociedade, tal como tendemos naturalmente a fazer com os que estatisticamente são diferentes de nós. É algo que faz parte da natureza humana, dos nossos antepassados selvagens e tal comportamento tem por missão, fazer com que prefiramos os da nossa tribo (que conhecemos e sabemos que nos protegem) em detrimento dos estranhos (que podem ser perigosos). Assim, o ciclista urbano era alguém que encarava com indiferença e até algum desprezo, ao qual associava normalmente ser alguém de movimentos de extrema esquerda, ou simplesmente um indigente.

Todavia, após me juntar os diversos grupos, comecei a ler e a informar-me sobre diversas matérias científicas relacionadas com a mobilidade, essencialmente urbana. Quando me apercebi do caos a que o meu país tinha chegado, enraivecido, despejei tudo neste artigo contra o ACP e o seu presidente, pois considerei-o (e ainda considero) em parte responsável pela tragédia a que chegaram as cidades portuguesas. Fui severamente criticado por todos, automobilistas e ciclistas, não tanto pelo conteúdo mas mais pela forma. Mais tarde, de forma mais sóbria, acusaram-me de preocupar-me mais em atacar os carros, do que defender as bicicletas (a minha mulher diz o mesmo).

A questão é, que tal como em relação ao tabaco em oposição a uma vida saudável, não se pode só promover uma vida saudável, sem se atacar o tabaco. Quando queremos subir a montanha de bicicleta, temos que pedalar para cima, mas quando nos cansamos, temos também de travar, para que a bicicleta não ande para trás. Promover a bicicleta, e os modos ativos de transportes, e combater a hegemonia do automóvel, são duas faces da mesma moeda, que me apercebi desde cedo, e que vários especialistas confirmam. É o que comprovam agora os estudos, sendo um deles extremamente interessante pois faz um paralelismo entre o automóvel e o tabaco.

As táticas que a indústria automóvel usa para atacar as medidas que visam reduzir a sua hegemonia económica e nos meios urbanos, são semelhantes às usadas pela indústria tabaqueira, e a mais emblemática é da liberdade individual. Quando fui a um colóquio do CDS-PP, expor toda uma série de argumentos contra a hegemonia do automóvel na cidade de Lisboa, a primeira pergunta que recebi foi: "como pode o Estado interferir na minha liberdade individual de ter carro e conduzir?". Em jeito de sátira escrevi há pouco tempo este texto, que sumariza as razões pelas quais, no que se refere ao carro, o Estado deve fazer fortes restrições. Em suma resume-se à velha máxima de que a liberdade de um, termina onde começa a do próximo.

As graves consequências para a saúde pública da hegemonia do automóvel são então:

Acidentes de viação

Os acidentes de viação causam, mundialmente, 1.3 milhões de mortes e 50 milhões de feridos por ano. Em 2030 crê-se que os acidentados representem 5% do total de enfermos. 90% dos acidentes são em países de baixos e médios rendimentos, e quase metade das mortes são de utilizadores vulneráveis ​​como peões e ciclistas, especialmente crianças. Esta hecatombe levou alguns especialistas a utilizarem a expressão "guerra nas estradas" ou "guerra civil", nas quais os interesses dos utilizadores vulneráveis são colocados contra uma extremamente influente indústria automóvel. Embora muitas vezes a indústria se concentre em campanhas de segurança rodoviária com crianças, por exemplo, como forma de reduzir os acidentes, não há nenhuma evidência clara de que estas campanhas reduzam, globalmente, os acidentes. Há todavia um efeito atestado de massa crítica: andar a pé e de bicicleta é mais seguro em meios com maior número de peões e ciclistas e menor tráfego automóvel.

Os acidentes de viação têm um impacto bem mais amplo. O tráfego e o medo de quedas são as razões mais comuns dadas por pais para restringir as crianças de brincar e andar ao ar livre, e no caminho que estas fazem até à escola. As pessoas na generalidade citam o medo de acidentes como uma das razões para a não adoção da bicicleta.

A inatividade física e a obesidade

Substituir a viagem de carro por modos mais ativos poderia melhorar significativamente os índices de atividade física e diminuir o aumento da obesidade. A atividade física tem sido descrita por especialistas em saúde pública, como a "melhor aposta" na saúde pública, para a redução do risco de doenças cardiovasculares, obesidade, diabetes, osteoporose, alguns tipos de cancro, e depressão. Adultos fisicamente ativos têm entre 20% a 30% de redução do risco de morte prematura. A inatividade física é responsável mundialmente, por mais de 3 milhões de mortes por ano.

Poluição

A poluição atmosférica em meios urbanos provoca mais de 1 milhão de mortes no mundo a cada ano, principalmente através de aumentos das doenças cardiovasculares e cancros, particularmente em áreas e grupos vulneráveis. A poluição do ar é uma mistura complexa de gases e partículas pequenas em suspensão, o constituinte mais comummente associados aos efeitos nefastos para a saúde. O transporte rodoviário representa entre 30% a 50% de todas as emissões de partículas. Os níveis de poluentes são maiores nas grandes cidades de países de baixos rendimentos do que em cidades de países com altos rendimentos. Um estudo de uma universidade Inglesa, faz uma correlação entre milhares de mortes por pneumonia e poluição provocada por automóveis.

Ruído

O ruído provocado pelo tráfego rodoviário é relatado como causador de distúrbios do sono, hipertensão, aumento da pressão arterial em crianças e pequenas patologias psiquiátricas.

Separação de comunidades

Um importante impacto que a hegemonia do automóvel tem nas comunidades é o efeito da 'separação' que o tráfego e as rodovias provocam nas comunidades. Pessoas que vivem em bairros mais tranquilos e coesos têm mais interações sociais, níveis mais elevados de confiança mútua e participação social do que aqueles que vivem junto a rodovias movimentadas. A participação social de um cidadão está associada, estatisticamente, a valores muito menores de propensão para diversas causas de morte. Bairros e comunidades com excesso de rodovias, tornam-se mais desumanos e menos acolhedores.

Alterações climáticas

As alterações climáticas ameaçam a sustentabilidade global e têm muitas consequências adversas à saúde pública. Estima-se que no final do século passado, 150 mil pessoas morriam por ano devido às alterações climáticas, principalmente pessoas em ambientes mais vulneráveis e em países de baixos rendimentos. O tráfego motorizado, estima-se, contribui para cerca de 22% de todas as emissões de CO2.

Desigualdades na saúde

Tal como o tabaco, os danos associados à utilização do automóvel, são suportados desproporcionalmente em maior quantidade nas comunidades mais desfavorecidas. As zonas do mundo com menos rendimentos são mais propensas a ter forte tráfego rodoviário, resultando em altos níveis de poluição do ar, ruído e acidentes de viação. As taxas de mortalidade e de feridos por acidentes de viação mostram um gradiente social deveras íngreme, com maiores taxas per capita nos grupos financeiramente menos favorecidos, especialmente quando se trata de ferimentos em crianças peões. Da mesma forma, há uma forte correlação entre pobreza e poluição do ar sendo as populações carentes mais vulneráveis ​​aos efeitos desta poluição. Os automóveis contribuem para as desigualdades globais, sendo que os países de baixos rendimentos sofrem mais com as alterações climáticas.

Conclusão

Parece-me agora, que enquanto ciclista urbano, mais do que defender as bicicletas, devemos, acima de tudo enquanto cidadãos, atacar a hegemonia do automóvel.

Fonte: Are cars the new tobacco?, Journal of Public Health. Margaret J. Douglas, Consultant in Public Health, Stephen J. Watkins, Director of Public Health, Dermot R. Gorman, Consultant in Public Health and Martin Higgins, Senior Researcher in Public Healt. 


2 comentários:

  1. Concordo com um ataque à hegemonia ponto!
    Vejamos a industria automóvel tem meios tecnológicos de produção em massa de veículos com emissões poluentes extremamente reduzidas, não sendo cientista ou argumentando estatísticas, basta-me estar atento ao desporto automóvel de topo para entender isso, vitórias de hibridos em Le Mans, Hibridos com 4 motores elétricos na Fórmula 1 e controle de combustível por corrida e treinos. Com tudo isto, nos confrontamos, o que é contraditório! Será? A contradição acontece por necessidade financeira, contra a económica e, é aqui que de facto reside a questão.
    A luta deve ter nomes certos e, não se chamam automóvel, chama-se feudalismo financeiro, restaurado por Maquiavel, após a idade média, com diferentes intérpretes históricos, mas prevalecente no poder, asfixiante do verdadeiro rico, contra o ser humano, não os pobres, isso também é engodo, todo o ser humano, gira dentro desta "ordem", pré determinada e, enquanto não deixarmos de ser preguiçosos e insolentes para com a natureza, destes grilhões não nos iremos libertar, não a culpa não é do popó, é do pspá!
    Acordemos!

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    1. O automóvel mata 1,3 milhões de pessoas por ano, segundo a ONU, apenas em sinistralidade rodoviária. No século XX matou tanta gente quanto a Segunda Guerra Mundial, cerca de 60 milhões de pessoas, apenas em sinistralidade rodoviária. Se lhe juntar outras causas indiretas mas relacionadas como a poluição do ar, ou o excesso de sedentarismo, poder-se-á facilmente atribuir centenas de milhões de mortes atribuídas ao automóvel apenas no século XX. Estamos perante, é consensual numa grande maioria de especialistas, um fenómeno epidemológico. E esta carnificina e hecatombe serve como muito bem explanou para manter a indústria automóvel e do petróleo no poder, a par, não se esqueça também da questão da hegemonia americana e do petrodólar. Ora lede.
      Cumprimentos

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