O processo coletivo e psicanalítico da negação!


Um dos principais efeitos psicanalíticos num viciado é o processo de negação. Por muito racionais que sejam os motivos para fazer com que o indivíduo largue o vício, a dependência química ou psicossomática é tanta, que ludibria qualquer ímpeto racional e faz com que o indivíduo crie mecanismos psicológicos para que consiga conviver com o facto de a razão lhe indicar que o seu vício é extremamente prejudicial. É como um fumador assíduo: por muito que lhe expliquemos que o tabaco mata, que vai ter uma morte dolorosa dali a vinte anos, numa cama de hospital, que vai ficar com os pulmões completamente definhados com cancro, e que vai morrer asfixiado com os pulmões inoperacionais, o fumador através de um processo psicanalítico de negação, ignora todos os paradigmas racionais, para que o seu corpo continue a ser saciado pelo prazer hedónico do pequeno falo na boca, e pela satisfação que a nicotina concede ao correr no sangue e no cérebro. É neste processo de negação que é comum ouvir-se: "a minha avó tinha um vizinho que fumou a vida inteira e morreu aos 85 anos" ou mesmo "a gente nunca sabe o dia de amanhã, quantos não morrem a atravessar uma estrada!". Tratam-se de processos psicanalíticos de negação que obstruem completamente o nosso lado racional, mesmo que os dados estatísticos digam que oito em cada nove cancros do pulmão fatais, se devem ao tabaco, ou que também devido ao tabaco morrem mais de cinco milhões de pessoas por ano.

Assim como há processos de negação para um indivíduo viciado ou completamente desalheado da realidade, podem haver processos de negação coletivos. Um caso histórico, foram as últimas semanas da segunda guerra mundial. À medida que o exército vermelho entrava ferozmente pela Alemanha vindo do leste, e em que todas as elites militares germânicas sabiam racionalmente qual o fim expectável da guerra, grande parte da população alemã, e também das elites do partido nazi, viviam num processo coletivo de negação, achando lá no fundo que "ainda era possível". O mesmo se passa hoje em dia com os recursos energéticos e naturais do planeta, que o Homem vai sugando irracional e desmesuradamente, sem qualquer controlo, apenas para saciar os seus ímpetos hedonistas do consumismo fácil e do prazer instantâneo; e quando os cientistas mostram por A+B que o paradigma tem de mudar urgentemente, as elites políticas dizem que "ainda é possível".

Por isso é que eu sou veementemente contra o automóvel por milhentas razões lógicas, técnicas e racionais. Todavia a população portuguesa vive num processo de negação coletivo. A maioria não quer saber dos números ou dos motivos racionais, quer apenas "deslocar-se" egoisticamente; já as elites políticas que deveriam ter mais consciência para esta temática coletiva, normalmente deixam-se levar pelo voto fácil. Mas tal como no viciado as consequências funestas são evidentes, também no coletivo elas acontecem: baixos salários, sobre-endividamente externo, balança comercial desequilibrada, desemprego e elevada carga fiscal. Mas cada português tem orgulho em ter o seu carro num dos países da UE com mais km de autoestradas por habitante. Estamos claramente no paradigma coletivo do processo psicanalítico da negação. A título de exemplo, quando recentemente expus a um familiar meu todas estas considerações racionais, ele respondeu-me, comparando o seu carro a um filho, por quem tudo fazemos sem pensar racionalmente. Respondi-lhe que num país com graves problemas demográficos como o nosso, o orçamento gasto num carro, sustenta em média três filhos.

1/4 das importações (2010) que Portugal faz (um país falido a ser regido por credores) são carros e combustíveis. Entre 1990 e 2004 houve um crescimento de 140% no parque automóvel. Num espaço onde cabe um carro, cabem 18 bicicletas, 30 delas podem mover-se no espaço devorado por um único automóvel. São precisas três vias de um determinado tamanho para mover 40.000 pessoas através de uma ponte em uma hora fazendo-se uso do comboio, quatro vias para movê-las em autocarro, doze vias para movê-las em automóveis, e apenas duas vias para deslocá-las pedalando em bicicleta. Entram 700 mil carros em Lisboa todos os dias, se os quisermos estacionar todos, considerando um lugar de estacionamento padronizado de 12 m2 e considerando que os carros ficam todos frente a frente e lado a lado otimizando espaço, ficaríamos com a segunda maior freguesia de Lisboa. Ou seja, a segunda maior freguesia de Lisboa em termos de espaço com cerca de 8,5 km2 é o parque automóvel que entra na capital, só ultrapassada pelos Olivais.

O carro polui, causando diversas patologias cardiorrespiratórias. O carro agrava seriamente a nossa balança comercial: quantos litros de vinho e quantas rolhas precisamos de exportar para importar todo este parque automóvel? Quantos baixos salários e quantos mais impostos teremos de sustentar por termos tido estes projetos megalómanos e faraónicos de autoestradas em cada concelho, sob a suposta égide da não desertificação do interior? Constatou-se tempos depois, que na realidade as autoestradas fizeram tudo menos evitar a desertificação. Pelo contrário, colocaram-nos na miséria, com encargos futuros para as finanças do país praticamente impossíveis de suportar, que serão pagos com austeridade e mais impostos. Protelámos as responsabilidades, para que as gerações vindouras acarretem as consequências. Normalmente um pai, deixa património aos filhos. Pois a geração que reinou nos últimos vinte anos, deixará apenas dívidas e miséria, e o único património foi uma enorme rede de autoestradas que não pode ser vendida e que tem encargos monstruosos. É como se um pai, operário comum, deixasse ao seu filho, um trabalhador de classe média, um Ferrari topo de gama, e que ficasse lavrado em testamento, que o filho não o podia vender nem alugar.

Portugal tem 560 carros por mil habitantes só ultrapassado pelo Luxemburgo, um país riquíssimo onde o salário mínimo é mais de 2000 euros/mês, e pela Itália, um país rico com indústria automóvel. Esta nossa dependência energética ao exterior, torna-nos também como país extremamente dependente das flutuações exógenas, e torna-nos seriamente muito menos soberanos. Se um dia, o cartel da OPEP acordar maldisposto e fechar a torneira da seiva negra, a miséria extrema apoderar-se-á do nosso país. E só não o fazem, porque também eles o sabem que se o fizerem, nós cidadãos da Europa, superaremos as carências, como sempre fizemos ao longo da história e ultrapassaremos as dificuldades, criando verdadeiros sistemas eficientes de transporte e de energia, e se tal acontecer, não haverá retorno e nunca mais dependeremos do cartel do petróleo. Então, eles vão deitando a quantidade que consideram adequada, nem de mais, para que o preço não desça demasiado e eles ganhem o dinheiro suficiente, mas também, não de menos, para que o mundo não se sinta impelido a arranjar alternativas eficientes de mobilidade e de energia. Neste marasmo, o mundo estará sempre dependente do tio Sam e do cartel da OPEP, que vai especulativamente debitando os litros de petróleo para fora, consoante "as necessidades".

E reparemos que
o ser humano, sem a ajuda de qualquer ferramenta, desloca-se de forma bastante eficiente. O ser humano transporta um grama do seu peso ao longo de um quilómetro em dez minutos, gastando 0,75 calorias. O homem só com os seus pés é termodinamicamente mais eficiente do que qualquer outro veículo motorizado e a maioria dos animais. Com esta taxa de eficiência o homem conquistou o mundo e fez a sua história no planeta. Com esta taxa de eficiência, as sociedades camponesas gastam menos de cinco por cento e os nómadas menos de oito por cento dos seus respetivos orçamentos temporais e sociais fora de casa ou fora do acampamento. O homem em bicicleta pode ir de três a quatro vezes mais rapidamente do que o peão, mas utiliza cinco vezes menos energia no processo. O homem em bicicleta transporta um grama do seu peso ao longo de um quilómetro em estrada plana e consome apenas 0,15 calorias. A bicicleta é o transdutor perfeito que combina a energia metabólica do ser humano com a impedância natural da locomoção. Equipado com esta ferramenta, a bicicleta, o homem supera a eficiência energética não apenas de todas as máquinas, mas também de todos os outros animais.

E o Homem, (e não só os portugueses), tem andado a viver bem acima das suas possibilidades no que concerne aos recursos energéticos e naturais do planeta. Quando numa casa, nos deparamos com determinadas carências imediatas, racionamos, ou seja, usamos a razão e a lógica, para saciar as necessidades de todos, sem grandes excessos para determinados indivíduos em particular. Mas quando as carências não são imediatas, e só surgem um certo tempo depois, o ser humano naturalmente e instintivamente tende a protelar as responsabilidades, consoante a constante de tempo do sistema logístico. Resta-nos a razão e a lógica, para fazermos uma boa gestão dos recursos, tal como o velho paradigma da cigarra e da formiga nas fábulas de La Fontaine. E neste planeta, com as florestas a serem destruídas, com os recursos naturais a ficarem definhados, consumimos de forma desmesurada e descontrolada os recursos que o planeta nos vai oferecendo, sem contemplar os tempos de regeneração natural. E o problema é que a inércia do planeta Terra é lenta, ou seja, as constantes de tempo do eco-sistema terrestre são muito lentas, podendo ser diversas dezenas de anos. Isto significa que as atrocidades ambientais que agora fazemos, terão repercussões catastróficas a longo prazo que não terão retorno.

E o Homem, neste delírio pelo consumo dos recursos da "sua casa", vive como quem vive com um vício. Os cientistas explicam às elites políticas, mas elas ignoram-nos. Os psicólogos sabem que umas das características vincadas de qualquer vício maléfico, é o processo de negação do paciente. O viciado, perante as substâncias aditivas, vive num processo de negação, ignorando todos os dados lógicos e racionais que o tentam demover do seu vício. É como um fumador assíduo. Pois o tabaco está para o fumador assíduo, como o petróleo está para o Homem. Por muito que expliquemos às elites políticas todas as maleitas a longo prazo, económicas, de saúde pública, ambientais, sociais, da nefasta e funesta hegemonia automóvel no planeta e em particular em Portugal; elas ignoram todas as explicações, pois estão embriagadas pelo voto fácil e pela energia barata num processo psicanalítico coletivo de negação.

40% de toda a energia que Portugal consome está nos transportes, desta, a grande maioria está nas viaturas particulares. 1/3 das emissões de CO2 está nos transportes, na maioria proveniente dos automóveis. 99% das viaturas em Portugal movem-se a derivados do petróleo. As 700 mil  viaturas que entram todos os dias em Lisboa, têm uma taxa média de ocupação de 1,2 pessoas por veículo, sendo que este valor poderia eventualmente chegar a 5. Isto tudo tem um nome: irracionalidade, ineficiência, primarismo e egoísmo, e isto paga-se caro, e bem caro. Os resultados estão à vista. As parcerias público-privadas rodoviárias são um arrombo nas finanças públicas, provocando mais austeridade e mais impostos, num país que não tem recursos energéticos nem indústria automóvel. A irracionalidade está à vista com as suas consequências imediatas:
35 mil mortos provocados por acidentes de viação em Portugal desde 1987, quatro atropelamentos em média por dia só em Lisboa e Porto, sedentarismo excessivo que provoca as denominadas doenças do coração que matam 36 mil portugueses por ano, e também as causas indiretas como desemprego, elevada carga fiscal, baixos salários, baixas pensões, enfim, austeridade. Um país a ser regido pelo exterior, sobre-endividado com investimentos catastróficos em rodovias que não evitou a desertificação do interior nem melhorou o nível de vida dos cidadãos, pelo contrário, os recursos que as rodovias excessivas sugaram do português comum e o dinheiro que este precisa de alocar para pagar o carro, são excessivamente pagos com muitas horas de trabalho e com impostos, tendo piorado o nível de vida dos portugueses e também a sua qualidade de vida. Um português médio se entrar às 9 da manhã, só ao meio dia e meia é que se livrou do carro e começa a ganhar dinheiro para outras atividades. Se considerarmos que em 100 euros de rendimentos num português comum cerca de 75 vão para o Estado, em impostos diretos e indiretos, veremos que muito desse dinheiro serve para pagar as irracionalidades do sistema rodoviário em Portugal.

Já por seu lado, a ferrovia, que é uma forma muito mais eficiente de transporte de pessoas e bens, tem definhado a passos largos nos últimos 50 anos. A CP fecha linhas e o governo manda encerrar linhas tendo o número de passageiros diminuído drasticamente nos últimos anos. A ferrovia além de consumir energia elétrica na maioria dos seus quilómetros, um bem que vamos tendo através de algumas fontes renováveis, além ainda de não poluir o ambiente, permite fazer o transporte de pessoas e bens de forma muito mais eficiente, pois um comboio suburbano por exemplo tem um consumo energético por quilómetro por passageiro, infinitamente inferior à média de veículos que entra nas cidades em Portugal. Portugal está no terceiro país da Europa a 27, no índice de quilómetros de autoestradas por quilómetros de ferrovia (em primeiro lugar está o Chipre que é uma ilha pequena e não tem ferrovia). Portugal é o quinto país da UE, com mais quilómetros de autoestrada por habitante, ultrapassando países como Alemanha, Suécia, Dinamarca, Itália, França ou Reino Unido. Mais, os dados mais recentes mostram que dos 2645 km de autoestradas que temos, só 42% é que se justificariam pois têm um tráfego médio diário (TMD) superior a 10000 veículos (abaixo deste valor, dizem os estudos que não se justifica uma autoestrada). Pensemos também por exemplo, como a rede de elétricos tem diminuído em cidades como Lisboa ou Coimbra. Se no século passado, Lisboa era das capitais europeias com uma das maiores redes de elétrico, e se pensarmos que à data de hoje se viu reduzido a uma linha entre Algés e a Baixa, e a meia dúzia de elétricos mais turísticos do que propriamente práticos e confortáveis, vemos claramente que Portugal apontou o seu paradigma energético para a dependência externa dos combustíveis fósseis.

E o espaço que o carro ocupa é muito preocupante! E o barulho ensurdecedor que o carro provoca é grave! Durante milhares de anos as cidades, como Lisboa fundada pelos Fenícios há mais de 3000 anos, foram para as pessoas, desde os Gregos, o Fórum público dos romanos, as praças da Idade Média onde se transacionavam bens, até aos boulevards e as alamedas arborizadas para passeio público que eram comuns no século XIX. Durante milhares de anos as pessoas faziam da cidade, das suas ruas, das suas artérias, das suas praças, um espaço onde confraternizavam, onde se moviam, onde caminhavam livremente, onde as crianças brincavam, onde jogavam à bola e ao peão e onde os animais domésticos vagavam sem serem desfeitos por máquinas de morte com uma tonelada de ferro em movimento.

Mas este povo vive viciado em carros, e enquanto não for assustado verdadeiramente, qual médico que diz ao paciente "ou deixa de fumar ou vai para a quinta das tabuletas", este povo viverá sempre num processo psicanalítico coletivo de negação. Espero que o "susto" venha cedo, para que não seja tarde de mais.

3 comentários:

  1. Muito bom.
    Excelente texto!

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  2. Muito certeiro! Qual é a percentagem do "buraco" financeiro português proveniente do carro, das PPPs em SCUTs e AEs, silos, empresas municipais de estacionamento, custos do SNS e INEM com doentes sedentários e oncológicos provenientes do carro, sinalética, guardas, pinturas, etc. que nos levaram ao resgate?

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    1. Meu caro, creio que nunca ningúem fez as contas, mas posso adiantar-lhe alguns dados para que tenha noção dos números ao nível da Economia

      Portugal em 2010 teve de importações 66 mil milhões de euros, dos quais 12% foram carros e 15% foram combustíveis, perfazendo 27%. Ora 27% de 66 mil milhões dá cerca de 17 mil milhões de Euros.

      Para ter uma ideia do que são 17 mil milhões de euros, i.e., um ano de importações de carros e combustíveis em PT, dou alguns dados:

      - é igual ao passivo de TODAS as empresas de transporte público em PT
      - é cerca de 3 vezes o Buraco do BPN
      - é 7 vezes a poupança que o governo quer fazer com cortes de salários e pensões para 2012
      - é cerca de dez Expo 98

      Isto é o que os portugueses pagam com a compra dos seus carros e com a importação de combustíveis em UM ano

      E falta o Estado com a rodovia!
      Quanto gasta o nosso país com a Rodovia?
      Bem não há números certos, mas há alguns indicadores que nos permitem ver a ordem de grandeza.

      "Só de 2005 até hoje, os encargos [PPP rodoviárias] cresceram 14 mil milhões de euros. Em 2012 o montante envolvido é de cerca de mil milhões de euros e em 2014 de cerca de 1.500 milhões de euros."
      in: http://www.dn.pt/politica/interior.aspx?content_id=2382360

      "O passivo da Estradas de Portugal (EP) ultrapassou no final de Junho passado os 15,2 mil milhões de euros, o equivalente a quase 10% do PIB."
      in: http://www.jornaldenegocios.pt/home.php?template=SHOWNEWS_V2&id=390803

      Agora não se admirem que hajam baixos salários, e que muita da população viva na miséria e que haja austeridade.

      A deificação do carro tem os resultados à vista.

      Cumprimentos

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