Diálogos metafísicos e passionais entre Kant e Camões


Kant numa noite de lua cheia veraneante em que as paixões se elevam encontra-se com Camões num qualquer bar do Algarve, ao sul de Portugal. Questionam-se sobre o que realmente demove o ser humano, se a paixão ou a razão.

Kant: Vede caro amigo como quando os homens decidem algo bem definido, são deveras intransigentes nos seus propósitos. Vede este conjunto de rapazes joviais com o sangue ao rubro a perseguirem fêmeas fecundas e profícuas numa noite de lua cheia. Vede como a razão se completa. Vão atrás das fêmeas tão-somente para obedecer aos seus instintos de procriação e de continuidade da espécie.

Camões: Não meu caro, eles limitam-se a cumprir o amor, limitam-se a cumprir os devaneios de Deus e da paixão. É este amor salubre a apaixonante pelas deidades femininas que os demove. São estas damas belas e joviais que os faz sentirem-se verdadeiramente arrebatados nas paixões e que os faz persegui-las. Não é o instinto, é o amor salubre.

K: O que denominais como amor salubre é tão-somente o instinto disfarçado e camuflado. O que denominais como amor é apenas um epíteto para o que os genes definiram há milénios na carne. Não me apraz este local, ver tanta frivolidade em torno de sentimentos tão banais como o instinto sexual. Eu acordo todos os dias às cinco da manhã para tomar o meu chá. Eu sou um homem do nascer do sol, da masculinidade racional, da objectividade e da actividade do pensamento.

C: Pois meu caro, para mim, a manhã é para dormir, é na noite que a feminilidade passional se revela, é na noite e na lua cheia que a criatividade atinge o seu rubro, que a escrita é profícua. Rogo-vos meu caro, não castreis o Poeta.

K: Não intento castrar a Poesia nem o Poeta, aliás, para a minha douta racionalidade e escrita bem definidas, em que os pensamentos são objectivos e ponderados, onde o falo racional está bem patente, onde consigo delinear pensamentos analíticos com objectivos propositados e bem delineados e configurados, sinto assim, que a minha antítese metafísica sois vós. Sois de uma feminilidade metafísica incomensurável pois os vossos versos estão carregados de incongruências, de falsidades analíticas, de carência de objectividade, sempre em nome desse pilar ancestral denominado por vós amor.

C: O Amor move e demove o mundo.

K: Mover e demover não são sinónimos? Para quê essa fachada poética em torno de uma manifestação natural?

C: E não são as manifestações naturais as formas mais belas e magnânimas de apreciar o que nos rodeia? O que fazeis por cá, pelo mundo? Não procurais a felicidade como todos nós? Não procurais o amor fecundo, não procurais apaixonar-vos por uma bela alva e cândida dama? Não haverá nada mais sublime que poder recitar um belo soneto a uma jovem imaculada e posteriormente poder beijá-la e com ela pernoitar. A face divinal, as protuberâncias peitorais, as nádegas arredondadas formam os ícones sacrais da volúpia e do amor salubre.

K: Todas as características físicas que me apresentais são traços que o vosso subconsciente reconhece como sendo sinais de fertilidade. Vós, para cumprirdes com os desígnios da sustentabilidade da espécie, sentis uma necessidade visceral de procurar e conceber mulheres com os traços físicos que haveis descrito. É essa vontade que vós apelidais de amor.

C: Sinto que as dicotomias dos nossos discursos tornam o debate acesso nos trâmites do pensamento. E vós, como encarais a vida? O que afinal procurais? Qual o vosso objectivo vivencial?

K: Procuro conhecimento e não me deixo ludibriar por essas frivolidades instintivas de foro sexual. Sou um filósofo, procuro o saber, todo o conhecimento e todo o saber. Ao procurar conhecimento e ao desmistificar certas falsidades que muitos de vós propalais, atinjo um estado metafísico superior, uma nobreza de alma insofismável. Apenas com o conhecimento atinjo o divino. O divino atinge-se com o conhecimento, com o saber, sem quaisquer rédeas ou entraves, não com a observação de uma face feminina, que é somente um impulso instintivo de um poeta.

C: Mas e se souberdes tudo, que fazeis? Deus só há um? Que fazeis com tanta sabedoria? Não é mais sublime e divino conceber uma bela dama fecunda? Deixar descendência carnal?

K: Tal fazem os ratos, os homens fazem algo mais. Deixam escritos, pensamentos filosóficos, doutrinam o pensamento das gerações vindouras, isso sim é descendência. Se tivermos a capacidade de moldar o pensamento dos nossos descendentes, estamos verdadeiramente a deixar um legado, que é muito mais importante, que um mero ser humano. Isso sim é a verdadeira alma, aquilo que transcende o corpo. A alma são os escritos, os ideários que moldamos, o mecenato que deixamos, os livros que escrevemos, pois tudo fica para lá da nossa morte, é uma energia que transcende o nosso corpo.

C: E alegrar um viril rapaz que galanteia uma dama como um escrito redigido por mim, não é também ter alma? Não é também deixar um legado que transcende o próprio corpo? Sou muito mais que um rato, pois os ratos não escrevem sonetos. Sou uma lésbica homofóbica, macho e viril que vê nas mulheres a mais bela criatura concebida por Deus. Nelas revejo o mundo, nas suas coxas revejo o cosmos, entre as suas pernas está algo que vai muito para lá de um mero canal por onde entra o falo e sai um recém-nascido. Revejo nos seus seis obras profanas e sagradas, revejo nos seus lábios as mais belas formas divinas do cosmos, e na jovialidade feminina revejo e fecundidade profícua que me impele a escrever os mais belos sonetos. E isto vai muito para lá do instinto ou da mera animalidade primária. A Poesia é a forma mais bela de encontrar e verdadeira génese do ser humano, pois concilia os instintos, os sentimentos naturais, com a razão pura, com a métrica e a ordem.

K: Teceis raciocínios carregados de sofismas e do ponto de vista analítico o que dizeis não está bem definido.

C: Sois belo, na verdadeira acepção filosófica do termo.

K: Também o sois.

A noite algarvia prolongou-se e Kant recolheu-se para os seus aposentos para na manhã seguinte acordar às cinco da madrugada para ler o matutino e para tomar o seu chá. Camões escreveu pela noite dentro diversos sonetos e enviou-os por correio electrónico para Kant posteriormente. Como a vida é bela e racional!

Sem comentários:

Enviar um comentário