Trabalho no Instituto Nacional de Marcas e Patentes desde há alguns meses, junto ao Campo das Cebolas na Baixa de Lisboa, e fico perplexo com tamanha diversidade cultural que abunda nesta zona da cidade. As restantes zonas das metrópoles são tão pitorescas. O pitoresco não está nos centros urbanos, o pitoresco, aquilo que se banalizou nos costumes e nos hábitos tradicionais dos povos modernos está algures nos subúrbios das grandes metrópoles.
Se um turista quiser saber o quotidiano do português moderno, terá forçosamente que percorrer os trilhos que o levam até à ancestral vila árabe de Massamá. Morar em Massamá é o sonho para qualquer casal recém-casado, é uma vila nos subúrbios de Lisboa onde se sente a atmosfera da portugalidade, onde não abundam os indigentes, onde as estruturas imobiliárias se tangem mutuamente podendo o velhaco observar a vizinha esbelta, voluptuosa e jovem na janela da frente depois do fresco e reconfortante duche, onde o caos automóvel é constante para o estacionamento e cuja jornada até Lisboa no quotidiano acelerado é uma autêntica cruzada à terra beatificada lisbonesa. Meus caros, a portugalidade autóctone, o vernáculo luso, são por certo no século vinte massamenses.
Na baixa pombalina, que deve o adjectivo ao sanguinário mação Sebastião José, que tem uma estátua erecta numa das rotundas mais emblemáticas da cidade, a baixa é caracterizada por aquilo que denominam os anglo-saxões das Américas na sua franca língua, de panela de mistura citadina e urbana. Por aqui, onde eu laboro, circundam indigentes, arrumadores, pedintes, executivos, chineses, homens que vendem cautelas, ciganos que vendem cavalo, coca e óculos de sol, turistas russos endinheirados, franceses que se deliciam com as sardinhas assadas, ingleses que se embebedam por bares e cafés, algo típico e patológico dos povos germânicos, espanholas que vociferam bem alto para comunicarem; afinal o mais ancestral modo de comunicação colectivo, mesmo antes do fumo do fogo, foi inventado por espanhóis, o grito, ou não querendo ser tão severo com os nossos irmãos castelhanos, a comunicação grupal em voz alta; ainda somos contemplados pelos másculos e viris, com protuberâncias abdominais, trabalhadores da construção civil, e ainda os chungosos desdentados e os ébrios da cevada que falam de futebol pelas bodegas e tascas da cidade.
Os indigentes fumam das beatas que vão apanhando pelo chão, muitos têm graves problemas patológicos de afeição ao suco de Baco, e bebem-no do mais humilde e modesto, aquele vinho que provem dos pacotes paralelepipédicos de plástico e que é menos dispendioso que o agrupamento das duas moléculas de hidrogénio com uma de oxigénio, vulgo água. Os indigentes sofrem de enfermidades psíquicas, não se lavam e deambulam pelas ruas do centro da cidade, dormindo sob os arcos e nos passeios.
Dou dois euros diários ao arrumador para me colocar o bilhete no automóvel. Um de manhã, outro à tarde, nos turnos dos fiscais camarários do estacionamento automóvel. O seu proveito é proveitoso passo o pleonasmo, por dia lucra um euro e meio só comigo, visto que cada bilhete por quinze minutos custa vinte e cinco cêntimos. Tal como a savana e a selva africanas os territórios estão estabelecidos. Cada arrumador têm a sua zona de acção, e em vez de urinar para estabelecer território, aproxima-se cuidadosamente e deve manter-se de pé firme, ao sol e à chuva no local para mostrar aos outros que aquela zona será sua. Por vezes há graves contendas, rixas violentas entre arrumadores por questões de manutenção de território. Um antropólogo ou sociólogo encontraria nestes locais um verdadeiro caso para estudo. Começam a haver problemas territoriais, tal como nas intifadas e santas guerras entre hebreus e árabes, pois a terra é pouca para tanta gente. Tantos arrumadores para tão poucos automóveis. Ainda vão ajudando a estacionar as camionetas e os autocarros turísticos com os russos aristocratas, os franceses, alemães, espanhóis e japoneses.
Os japoneses são extremamente interessantes, e já não guardam o espírito tribal ou rural de guerreiros e samurais. Agora trazem a sua espada tecnológica, os seus falos negros fotográficos, as suas erectas e firmes objectivas que vêem tudo e que querem captar tudo, que querem entrar em tudo e disseminar em tudo; mas não, aquelas objectivas fálicas não passam de vaginas tecnológicas receptoras pois guardam todo o sémen pictórico e digital na matriz de transístores que têm no seu interior. Recebem todas as imagens para onde apontam; aquelas objectivas nipónicas são autênticos buracos negros pictóricos, pois captam e assimilam tudo os que lhes está ao alcance visual e gravítico.
Os franceses deliciam-se com as sardinhas assadas, enquanto Amália canta “Lisboa não sejas Francesa”. Não o entendem, até porque o povo lisbonês é acolhedor e todos o sabem. Caminham e ficam perplexos com os azulejos, com a arquitectura do centro da cidade.
Os nórdicos e as nórdicas voluptuosas e escaldantes, grossas e atraentes, desabituadas a este calor mediterrânico, caminham praticamente desnudas deliciando a população masculina autóctone. Nunca vi tanta perna alva, de traços nórdicos, e rosada pelo sol de Verão. Vou até à rua Augusta e é a azáfama do turismo. Sento-me numa esplanada e requeiro um café, aprecio os turistas a deliciarem-se com a gastronomia portuguesa, barata e deliciosa. Pago pelo café o dobro do preço convencionado em Massamá. Saio e sento-me noutro famosíssimo local lisbonês, Martinho d’Arcada, o estabelecimento comercial pessoano. O rapaz aproxima-se e pergunta-me “para almoçar?”, respondendo eu, “para café!”. Lá me arranja uma mesa, tomo o café, vejo o correio electrónico pelo celular, pago o dobro do convencionado pelo café, e vou trabalhar. O Martinho d’Arcada ficou mais para os turistas do que para os lusitanos, os portugueses já não manjam no Martinho d’Arcada, pois este é caro e só os turistas estão dispostos a dispensar mais algumas coroas para se deliciarem por aquele café pessoano.
E quem divaga rectamente, com indumentárias de proveniências maçónicas e anglo-saxónicas, quem caminha por entre os indigentes e os turistas, são os executivos engravatados dos ministérios e dos departamentos governamentais que vão havendo por aqui. Eles andam aprumados, falam de forma austera e fleumática, indiferentes ao mundo que os rodeia. Apenas a finança e os orçamentos, a tecnocracia e a lei. Vejo-os no meu quotidiano pelos cafés e pelos restaurantes quando comem os bitoques grelhados de vaca com água e falam sobre lei e numerários altos.
Os bancos abundam, assim como abundam os bancários, e também em menor número os banqueiros. À sexta-feira é a correria e a azáfama nas papelarias para ver se sacam cem milhões de coroas europeias no prémio europeu da lotaria. É a santa casa que nos providencia com estas remunerações. É assim o equilíbrio lusitano da caridade e da ganância, da filantropia e do semitismo, da solidariedade e da avidez, e no meio está a santa casa da misericórdia, ou seja, quem gere este prémio milionário é a santa casa, cuja sacra missão é ajudar os pobres. Parece-me que estamos num paradoxo ideológico, ou talvez num sacralizado equilíbrio, canalizando a ganância de uns para auxiliar os outros que nem sequer têm condições para apostar numa única combinação do jogo.
Mas os engravatados jogam, pois sabem que se ganharem ficarão milionários que é o seu sonho desde que terminaram aqueles cursos superiores medíocres e sem sentido.
O taxista, o condutor taxativo, protesta e elabora oralmente diversas expressões que não ouso transcrever por pundonor. Os taxistas são autênticos animais selvagens na estrada, sem escrúpulos ou piedade, são guerreiros do asfalto, mercenários do alcatrão, se fosse regente retiraria a buzina dos volantes de todos os táxis, pois os seus condutores usam-na despropositadamente em noventa e cinco por cento das vezes. Já para não falar que taxistas e camionistas têm o denominador comum de se deliciarem com frequência em lupanares e principalmente com as chamadas profissionais da libido pelas zonas catalogadas da cidade. Todos os taxistas têm os seus contactos no mundo do eros. Aliás, os táxis em Lisboa providenciam se o seu cliente desejar, autênticas rotas do prazer. Outros considerariam-no um degredo, mas tal daria um tratado ou um quem sabe um postulado.
Cautela com a cautela, o cauteleiro vocifera constantemente o número treze e o sessenta e nove! Vai fumando o seu cigarro e vociferando os números da sorte, o velhote deveria estar a usufruir dos rendimentos do estado pois revela uma idade avançada, mas vai deambulando pelas ruas vendendo cautelas.
O cigano, não gama nem assalta, mas induz à perdição, quando nos alicia com produtos de origem duvidosa, com ouro falso, com óculos de sol foleiros e com droga, e dou-vos um conselho caros leitores, nem sequer dirijam a palavra a um, pois estes têm uma capacidade oratório colante caracteristicamente de lapa, que não desgrudam enquanto não saciarmos os seus ímpetos comerciais. No outro dia uma cigana leu a sina através da mão a uma amiga minha eslovena na praia. Disse-lhe que ia ter filhos e que iria ser muito feliz. Dois euros para prever o futuro. Porque é que as ciganas não apostam na lotaria e tiram as comunidades da miséria?
Os chineses pacatos, quase indiferentes, extremamente serenos, não alteram de tom de voz ou de atitude perante o cliente. Estão ali para servir, não para serem simpáticos, nem para se expressarem muito, honestos, vendem material que até considero que tem uma elevado rácio entre a qualidade e o preço, o público abraça esta onda proveniente do oriente. Compro-lhes uns óculos de sol que ainda tenho por quatro euros, quando nas ópticas lusitanas custam pelos menos uns quarenta, dez vezes mais, e creio serem de qualidade similares. Na nova China tecnológica trabalha-se sem cessar, sem descansos ou piedade, e o espírito colectivo abraça estes ritos laborais e sacrificiais. Se assim não fosse não se havia construído a grande muralha por vastos desertos e montanhas.
O paquistanês enveredou pelo mercado das telecomunicações móveis. Tem um pequeno bazar que nos liga ao mundo através da inter-rede, vende cartões de telefone para os brasileiros telefonarem para o país natal, vende acessórios de telemóveis, também se aliou às grande operadoras de telecomunicações. Este povo indo-europeu que abraçou o Islão dedicou-se também na Lusitânia a vender rosas nos bairros de ebriedade, onde o amor fecundo é o último princípio que reina; ofereci em tempos uma destas rosas a uma esbelta polaca que conheci, e confesso que me revia na verdadeira fecundidade, mas à minha adorada eterna eslavo-lusitana de nome Nádia, ofereci um autêntico buquê de rosas como sinal consagrante do nosso verdadeiro amor. Este povo indo-europeu que abraçou o Islão, na zona perigosa entre a Índia e o Paquistão, já me providenciou por poucas coroas sensações interessantes de tranquilidade junto de esbeltas e formosas sereias europeias.
No outro dia almocei no Italiano, devo dizer-vos caros leitores que nem é muito caracteristicamente Italiano, mas o que mais me entusiasma é o facto de ser um casal itálico a gerir o estabelecimento, servindo umas pastas e umas pizas deliciosas, a preços muito acessíveis.
Converso em francês fluente com duas francesas na esplanada do restaurante, indicando-lhes os locais mais aprazíveis na cidade, sem referir claro está a famosa música de Amália “Lisboa não sejas Francesa”.
Almoço diariamente no Facho, embora nas últimas eleições tivesse enveredado por pôr o voto nos comunistas lusitanos, homens de esquerda que erguem a mão direita, doutrinados pelo país que ocupa toda a direita no atlas do mundo. Os comunistas gritam altamente que jamais serão derrotados. Uma salada de atum com legumes é o que ingiro no Facho. Não tenho tochas nem fasces, e sou partidário do verdadeiro humanitarismo.
É assim o Castelo, a Baixa, e Alfama a quem peço uma Bica. O centro da cidade é um autêntico lamaçal étnico e cultural, onde prevalecem todos os extractos sociais, onde reinam todos os sectores do comércio, e onde não prevalece a portugalidade que os turistas procuram. A verdadeira portugalidade contemporânea está em Massamá, no Cacém, em Frielas, em Queluz, em Unhos, no Catujal ou na Apelação. A verdadeira tradição lusitana do século vinte está nos Olivais, em Chelas e no Parque das Nações. O que os estrangeiros encontram no centro lisbonês é uma mescla étnica e cultural, abrangente a todas as classes, desde o alto magistrado até ao indigente que mendiga, indubitavelmente única, singular e sem paralelismo noutros locais do país.
O alemão, mesmo antes de grafar no teclado latino esta entrada no meu diário filosófico, tirou extasiado, uma fotografia ao prédio todo em azulejos, que por similaridade semântica do substantivo, eram azuis. Onde é que em Portugal a construção civil moderna emprega azulejos para revestir os seus prédios?
O local onde é laboro é uma panela de mistura onde se funde e se liquefaz uma heterogeneidade genética e social inigualável.
Abracemos o Fado, o Tejo, Lisboa e toda esta mescla cultural.
Abracemos a capital do império dos Lusíadas.
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